sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Juntos de novo estivemos
todos, contigo, passeando;
e, de súbito, velho me vi.

Como se outro fosse,
como por outro escutasse
quando calado falasse
o segredo, o pensamento
do tempo depois do tempo.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

serenamente...

Na noite passada estivemos juntos...
Num sonho calmo,
como que embalados por jazz,
em gestos de oferenda.

Quando regressei à minha vida,
logo fiz o que me disseste.

quarta-feira, 19 de março de 2008

no Dia do Pai


Agora tua visão é límpida,
agora tens toda a força do teu espírito.

Tua alma livre e libertada continua em eterna viagem
- não há frio onde estás.

Acompanhas os meus passos
como nunca antes podias.
Estás presente nos meus braços,
repetindo minhas preces.

Da Terra ausente,
tenho-te mais perto de mim:
mais perto de ti me sinto.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

de Valério Guerra


Querido Amigo, foi, o teu Pai!

Choro pelo teu
com saudades do meu.
Choro por ti
por saber o que sofri,

por amargar ainda
a vespa do luto,
por não voltar a linda,
a cepa que me fez fruto.

Destra lei da vida
que nunca nos prepara
para tamanha ferida
e a raiz desampara.

Quando um pai nos parte,
vão com ele fogos e auroras,
e o que sobra não tem arte:
secam campos, telhados, noras...

Fica-nos a vez
- e como dói essa vez! -,
de tornear um fio de luz
ao espinho que a morte induz.

do sobrinho José Joaquim:



No passado dia 12 perdi um velho Amigo! Homem de muitos ofícios e outras tantas empresas. Cidadão de Portugal e do Brasil, ambos percorridos e calcorreados de Norte a Sul no desempenho activo das mais diversificadas funções profissionais. Homem informado e com uma cultura geral acima da média, com uma experiência de vida fascinante, defensor da Família como suporte de Vida, Amigo do Amigo, sempre disponível para mais uma conversa, mais uma história, mais uma experiência relatada. Foi grande responsável pela minha paixão de viajar, pelo meu especial gosto e interesse pelo Brasil e por tantas outras influências que reconheço haver tomado por meio da nossa proximidade intelectual e principalmente pela Amizade. Terminou o seu percurso nesta Terra aos 88 anos de idade. O Tio José Munhoz, “pulou a cerca”… Bem Haja!

(in olhares.com/edarf, no resumo da foto com o título Homenagem, ou, a Cerca)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008


Nos minutos que nos restam
nos não sobram ansiedades:
há vozes que não protestam,
e vão calando as maldades.

Muito ou pouco mal seria
se o tempo nos chegasse;
por não fazer o que devia
não ouvi quem se queixasse.

Nos sobra tempo, sobra ilusão;
longa, nos esmaga a solidão,
curta ou breve, da demora.

Que outros fiquem por terra
para aprender porque se erra,
que por pouco tempo se chora...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

RESUMO HISTÓRICO PESSOAL (1)

“Após o exame primário aos doze anos de idade (2), fui viver para SETÚBAL, onde meu tio Manuel, irmão de minha mãe, morava.
Trabalhei no escritório da torrefacção de café, propriedade do meu tio, fazendo cobranças e vendas e estudando na Escola Comercial e Industrial caligrafia, em aulas nocturnas.
A senhora que vivia com meu tio tinha um sobrinho mais ou menos da minha idade, que gostaria de lhe dar a mesma situação que a minha. Assim sendo, existiam um certo ciúme, represálias surdas e invinientes. Como tal, não me sentia à vontade, pelo que resolvi voltar a casa de meus pais (3), empregando-me em Lisboa, na firma Pires de Oliveira, Lda., situada na Calçada Marquês de Abrantes.
Tratando-se de um ramo que já conhecia um pouco, pois que a firma também tinha torrefacção de cafés, bem como especiarias e artigos inerentes, comecei como vendedor. A zona que me foi indicada para a actividade foi o Alentejo, especialmente o Sul.
O meu pai (…) era negociante de gado, sendo os animais destinados a trabalhos diversos. Tratando-se de animais novos, logo portanto relativamente caros, não foi nada feliz com o negócio, morrendo alguns, piorando a sua situação económica. Então resolveu mudar de negócio, começou a abater um porco ou dois por semana, vendendo um em fresco e os restantes, fabricando enchidos que minha mãe temperava bem.
Estando novamente a vivermos todos no mesmo lar e sendo o filho mais velho resolvi trabalhar em conjunto. Assumindo moral e fisicamente, capital não havia mas sim crédito. Assim sendo, promovi o seu desenvolvimento e meti mãos à obra, como princípio de expansão, comprei uma salsicharia em BUCELAS.
A pretensão era também no sentido de conseguir alvarás para as duas salsicharias – a primitiva e esta segunda – o que era bastante difícil. A vontade e a insistência venceram, isto para que pudéssemos vender carnes de bovino e outras – estávamos a aumentar as matanças, que já eram de quinze a vinte porcos.
Em seguida se conseguiu autorização para abater bovinos. Foi então que comprámos um terreno, para a construção de um matadouro industrial e um armazém para rações com o respectivo moinho triturador de cereais. Também se construíram malhadas higiénicas cimentadas, lavadas periodicamente, e uma balança para pesar animais vivos, a fim de controlar reposições e custos respectivos.
Com o aumento das matanças, que seriam entre noventa e cem porcos por semana, fabricávamos produtos salsicheiros, que mais se vendiam pelo litoral de AVEIRO e algum interior. Fornecíamos carnes frescas a alguns talhos em Lisboa e houve algumas remessas de fiambre para ANGOLA.
Embora tivéssemos feito dois poços, com o consumo já existente, como alternativa, se resolveu fazer, numa propriedade a cerca talvez mais de um quilómetro, mais um poço bastante fundo e ainda um furo artesiano. Em consequência se fez também uma canalização em tubos galvanizados, por onde corria água por gravidade.
Mais ou menos nestas datas (4), pensei em fundar uma Colectividade Recreativa (5), como ainda um Grupo Musical do qual também fazia parte (6) – “OS BEM ENTENDIDOS”.

(o primeiro a contar da esquerda, de pé)


Então se pensou em comprar um ou dois talhos em Lisboa, como o 256 na Rua Saraiva de Carvalho, como ainda o 68, que tinha sido na antiga Praça da Figueira, cujo alvará comprei e abri novo no Bairro de São Miguel, em Entrecampos.





Com a esposa, Deolinda.



Então surgiu a ideia de constituir uma Sociedade por quotas de responsabilidade limitada – “DOMINGOS FRANCISCO FRADE, Lda.”, na qual figurava a família. Sendo eu sócio gerente, com quota realizada, os restantes com quotas a realizar, nomeadamente os meus cunhados, maridos de minhas irmãs. A mais nova, que era menor e solteira, não figurava como sócia, tendo ficado acertado que a quota que viria a ser dela, em nome do pai. Não esquecendo a colaboração do meu irmão Domingos que ainda hoje trabalha no 256. Começou em 1 de Novembro de 1951, tendo vindo também meu sobrinho Domingos, filho de minha irmã Mabília (…). A esta altura já tínhamos quatro talhos, sendo o inicial o de Bucelas mais os dois de Lisboa.
Aqui as coisas pioram: uma perseguição fiscal a todos sectores especialmente aos retalhistas, com tabelas feitas ad hoc. Numa grande parte dos casos, até se chegava a comprar por mais do que o estabelecido pelas tabelas. A contribuição industrial era lançada por suposição, não em função de possíveis lucros auferidos (“SE NÃO GANHOU GANHASSE” – argumento humano!); com preços tabelados ao público impossíveis de cumprir, ordenados a pagar, rendas e outras despesas impossíveis de ser alienadas.
A fiscalização das actividades económicas era de tal ordem brutal e violenta, até com clientes, pois que até esperavam que (clientes) saíssem dos estabelecimentos, exigindo que lhes mostrassem o que tinham comprado e quanto tinha. E como o comerciante não podia cumprir e arriscava, vinham logo as multas, processos em tribunais. Por experiência própria – que me levaram duas vezes – em qualquer delas, ao pretender justificar, me mandaram calar e se insistisse “mando-o lá para baixo se não vai já” – era pois prisão.



Também fiz parte de duas firmas para construção civil: eu e outro construímos um prédio no Bairro de Santa Engrácia e o segundo na Rua Sampaio Bruno, em Campo de Ourique. A seguir à primeira construção, com mais um sócio a que por força de circunstâncias não pude dizer não (isto porque era o veterinário que fazia as inspecções sanitárias no matadouro …).
Os prédios que se construíam naquela altura só se vendiam no seu todo, não havia a modalidade da venda por andares, logo portanto só compravam os senhores do dinheiro, ministros, secretários, etc.
Com contrariedades mais que suficientes para desesperar, nas malhadas de engorda de porcos ainda faltava mais esta: com cerca de seiscentos porcos já com pesos médios de mais de cinquenta quilos, pois que uma peste suína – segundo os sabidos vinda de África, matou tudo. Se sobraram alguns – meia dúzia, talvez – nunca chegaram a ter condições sanitárias para abate.
Em face de tudo isto, desesperado resolvi ir para o Brasil. Ficou o meu irmão, com a colaboração do (…) marido da irmã mais nova.





Embarquei (7) no dia 21 de Novembro de 1959, isto após ter completado quarenta anos. No dia seguinte, 22, encontrava-me em S. PAULO, com um cheque de 6.000$00 escudos (por exigência oficial como garantia para a passagem da volta, com o máximo tempo de noventa dias), mais uns trocados.
Ao desembarcar no aeroporto, dirigi-me a um taxista, no sentido de me levar a um hotel modesto o mais barato possível, o qual me deixou na Brigadeiro Luís António, não me recordo do nome do hotel bem no centro de S. Paulo. No dia seguinte, procurei o único conhecido que já estava há algum tempo lá – em Lisboa tinha sido meu cliente de carnes – e já estava estabelecido no centro de S. Paulo.
Foi então que me indicou um hotel perto, na Rua Concelheiro Furtado, o mesmo de propriedade de uma senhora portuguesa, viúva, com três filhos, (…) onde vivi uns meses.
Um dia, ao entrar num bar para tomar um suco de laranja, o senhor que me atendeu – português, notou em mim, pela fala, tratar-se de um patrício chegado há pouco, logo me perguntou se (…) tinha alguma actividade. Claro que respondi que não tinha. Puxou de um cartão com o endereço de uma firma – também de portugueses – proprietária de três restaurantes.




Na Avenida de S. João, após o diálogo com a gerência, fui admitido como gerente (encarregado, será melhor classificado). Do restaurante LEÃO na Avenida S. João, onde estive algum tempo, fui transferido para o Leão de OLIDO, na mesma Avenida, com trezentas mesas, em que à hora das refeições, especialmente ao almoço, havia muita gente esperando lugar para sentar.
Em certa altura (não posso precisar quanto tempo) comprei uma pensão perto da Avenida Paulista, com uma pequena entrada, passando a pagar em prestações mensais.





Foi quando chegaram (8) a minha mulher e o nosso querido filho, que nela moraram algum tempo. A um outro patrício que conheci lá, em vistas de voltar a Portugal – chamava-se Manuel Dias, vendi a pensão transferindo as prestações a pagar e recebendo algum.
Assim sendo, comprei o camião de transporte de carnes, ficando a fornecer os talhos. A compra deste negócio se processou nos mesmos moldes da pensão, facilitado o pagamento. Assim iniciei nova actividade, comprando e vendendo carne, portanto um ramo que conhecia.
Comprava nos matadouros, um em GUARULHOS e outro em JUNDIAÍ, carregando carne de porco e de bovino dois dias por semana, escolhendo os produtos e marcando a quem se destinavam. Este serviço era feito de noite. Nos outros dias, fazia as vendas e respectivas cobranças. Ajudava-me um Lituano, de seu nome Zenonas Jastrezemskis, de alcunha o “Ziga”.


Passei a morar com a família na Rua do Lava Pés, bem no centro de S. Paulo (9), num apartamento em prédio ao lado de uma escola primária onde o nosso filho começou os estudos.
A certa altura surgiu a ideia de ir para Santos, pois o Costa, padrinho de minha filha, se tinha mudado para lá, onde comprara uma garagem. Tratava-se de actividade menos trabalhosa e, um tanto melhor, os respectivos resultados eram bons.
Ao surgir a oportunidade de compra da Garagem do Comércio, bem no centro de Santos, com bastante boa clientela, onde se efectuava lavagem e lubrificação de carros, como também recolha e estadia, vendi o camião (…).
Logo portanto, com a filha de meses, que nasceu em S. Paulo, me mudei de residência para Santos, fomos morar num apartamento no Bairro do Embaré. Houve mudança dos tarecos, com certas dificuldades, como também a mudança de escola para o filho.
Estando em Santos uns tempos, surgiu a possibilidade de mudança para o Sul – Pelotas, Rio Grande do Sul.” (10)














NOTAS:

1. Texto não datado, escrito por meu pai, em cinco folhas dactilografadas, numeradas, mais duas manuscritas, de que apenas após o seu falecimento tive conhecimento. Optei por editá-lo com ligeiras alterações de pontuação, preenchendo os pequenos lapsos, no sentido de o tornar mais claro, evitando adulterar o seu estilo próprio.

2. 1932?

3. Em Arranhó, sua terra natal, no concelho de Arruda dos Vinhos.

4. 1942?

5. Sociedade União Recreativa de Arranhó, de que era o Sócio Fundador Número Um.

6. Nessa banda, com uma dezena de elementos, tocava bandolim e clarinete.

7. Em avião semelhante ao da foto, sob os céus da esplêndida Baía de Guanabara.

8. No Paquete Vera Cruz (foto), que depois de fazer escala no Rio de Janeiro – em que meu pai apanhou boleia –, aportou em Santos a 27 de Setembro de 1960.

9. Cambuci.

10. Aqui termina o resumo autobiográfico, precisamente em meio da sua vida, com cerca de quarenta e quatro anos pela frente. Provavelmente, o défice visual forçou-o a interromper o relato. Tentarei dar continuidade a uma panorâmica, necessariamente resumida, da sua epopeia pessoal.

Beja, 22 de Janeiro de 2008.

José Jorge Munhoz Frade

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A SEGUNDA METADE (*)


Introdução
Tentarei dar continuidade ao resumo biográfico de meu pai, procurando descrever, também resumidamente, naturalmente sob a visão própria de filho, esperando ter o distanciamento suficiente para não deixar de referir os factos mais determinantes, esperando ainda, complementarmente, ter a proximidade afectiva que julgo ter havido entre nós, necessária para entender os significados da sua vivência. Nesta tarefa, conseguir esse equilíbrio será imprescindível, para que aqui se construa uma verdade tão próxima do que a que ele próprio para si construiu, nos seus sonhos e realizações.
Se pode dizer-se que o fio condutor do seu labor na primeira metade da sua vida terá sido o sentido de FAMÍLIA, não menos certo será ter como verdade que, mantendo esse cultural e emocional sentido bem vivo e presente durante toda a década brasileira, nessas terras do Cruzeiro do Sul lhe surgiu um novo e indissolúvel sentimento pátrio.



Tendo-se naturalizado brasileiro, com uma filha nascida na grande urbe fundada por um bandeirante português, não mais deixou de nutrir por esse grande País grandes expectativas, conjugada com as memórias do carinho dos seus povos, na diversidade de suas regiões, que tão bem conheceu e que – tenho a certeza – lhe deixaram as recordações mais gratificantes da sua vida de “homem de sete instrumentos” e “das sete partidas do Mundo”…



Nutrindo orgulho pelo seu Brasil, legitimamente sentindo ter feito parte da sua construção, manteve até ao fim como pérola de glória a memória da vivência desses anos.



No Rio Grande do Sul


Pegando nas últimas linhas do seu breve resumo autobiográfico, começarei por recordar a viagem de mais de mil e quinhentos quilómetros, a caminho dos Pampas gaúchos, ao volante do “fusca” (Volkswagen “carocha”). Em direcção ao Sul, recordo esse trajecto que então fizemos como a descoberta da imensidão, passando por cidades como Curitiba (Paraná), Lages (Santa Catarina), Caxias do Sul, Novo Hamburgo e Porto Alegre (Rio Grande do Sul).
Para meu pai, que previamente efectuara esse mesmo percurso noutras viagens exploratórias, o sentido aventuroso tinha um significado bem real, em diversas peripécias ocorridas nos longos mil e quinhentos quilómetros da estrada.
Lembro-me da história que contava, de uma armadilha montada por assaltantes, em que tendo-se apercebido do que estava preparado, acelerou decididamente o Volkswagen em direcção a uma grande pedra que tinha sido atravessada no pavimento, o que fez, graças à forte chapa que cobria a parte inferior do chassis, o nosso carrinho literalmente saltar por cima da mesma, levantando as quatro rodas no ar, caindo mais à frente e continuando a sua marcha sem parar, frustrando assim as intenções dos bandidos, cujo o intuito era obrigar os viajantes a parar.
Na plana e bem traçada cidade de Pelotas, com tradições culturais, de interessante arquitectura, facilitadora de belas amizades, deu meu pai largas à sua grande capacidade de iniciativa empresarial. O Curso Comercial efectuado em Setúbal foi-lhe de grande valia, destacando-se no meio dos agentes económicos da região pela sua preparação e “bagagem”. Logo em 28 de Maio de 1963, conseguiu que a Câmara Municipal da “Princesa do Sul” aprovasse uma lei autorizando-o e aos seus dois sócios a utilizar a aparelhagem do Entreposto de Leite para o fabrico de gelo.




Os filhos, em 1965: Leonor (3 anos) e José Jorge (11 anos).



A história dos anos passados nas planícies verdejantes do Rio Grande do Sul, onde os “João-de-barro” constroem engenhosos ninhos e onde grita o “Quero-quero”, está marcada pelos episódios decorrentes da criação e gestão de uma empresa, que denominou “AGROPESCA - Indústria de Produtos Agrícolas e Pescado Ltda”. Estava situada junto da margem do São Gonçalo, canal natural povoado de bagres e lambaris, que liga a Lagoa Mirim à extensa Lagoa dos Patos.
Entendo aqui dever fazer referência, pela importância que assumiu nesses anos como investimento, e pelas consequências dela advindas em termos de custos, à aquisição de uma embarcação aos armadores de cabotagem Vandenbrande & Cia, de Santos.



Construído em 1947, o cutter “Olímpico” era um barco de 36 metros de comprimento e 400 toneladas de carga. Estava equipado com um motor Atlas Imperial de 420 cavalos e a capacidade dos porões era de 386,5 metros cúbicos.
Inicialmente concebido como cargueiro, sofreu profundas transformações num estaleiro do porto de Pelotas, adequando-o à actividade pesqueira, como arrastão
de alto mar. Saliento a instalação de equipamento de sonda para localização de cardumes (“Simrad echo” – veja-se a foto). Naquela época, poucos pesqueiros brasileiros possuíam essa inovação tecnológica.
A pintura, de cor branca, foi escolhida para lhe dar um esplendor luminoso que o fazia destacar dos outros navios de pesca atracados no porto fluvial do São Gonçalo.
Logo que ficou operacional, trazia o peixe misturado com gelo, dos mares frios do Atlântico Sul, nas costas da Argentina. Homem que não gostava de temperatura atmosférica baixa, meu pai contava a experiência de uma viagem a essas paragens gélidas, na pesca da merluza, em que até um pinguim saltou para dentro do barco.
O produto das fainas era processado nas instalações da Agropesca, onde eram preparados filetes congelados – para distribuição por todo o Brasil – e onde eram cozidas e moídas as espinhas, fabricando uma fétida farinha destinada a rações.
Quando tudo parecia decorrer dentro da normalidade, eis que o infortúnio, sempre presente na vida de meu pai, mais uma vez se manifestou, de forma desmoralizante, após todo trabalho dispendido: ao largo de Santos, o Olímpico ficou irremediavelmente destruído por um incêndio, tendo seguidamente afundado.
No sentido de procurar ultrapassar a difícil situação então instalada, ausentava-se de Pelotas por meses, fazendo ‘demarches’ em São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Salvador e Recife. Com maior frequência a partir do mês de Julho de 1969 – tinha eu quinze anos – trocámos uma afectuosa correspondência. Começando-as sempre por “Ao meu querido filho”, o que nessas cartas me dizia possa aqui ser apreciado, nos extractos que revelo e que me dispenso de comentar.
· (Rio, 3 de Julho de 1969) – “Tenho tanto que te dizer, mas não adianta, na realidade há que aguardar os resultados. No entanto, já começas a entrar numa fase que deverás já pensar a sério em tudo e muito especialmente em teu futuro. Portanto não perderes um momento aproveitando estudando, pedindo a Deus que possas continuar a ter a oportunidade desse aproveitamento que é o poderes estudar.
· (Rio, 22 de Julho de 1969) – “Trata da tosse e alimenta-te de molde a recuperares o peso perdido, porquanto em tua idade, isso não é conveniente.” (…) “…a nossa situação é feia!” (…) “Confiemos em Deus!...” (…) “Sobre notas, embora aches melhores e na realidade não sendo más, elas deveriam ser melhores; pois ao terminares o ano e ainda com o desejo que nos anima, só terás vantagens em as melhorar. Gostaria que isso acontecesse!...” (…) “Perguntas se assisti à chegada do Dr. Marcelo Caetano. Fui ao aeroporto, e estive também na Avenida Rio Branco quando da passagem em carro aberto. Havia muita gente, mas no aeroporto não achei: e como dizes nada ou quase nada na televisão, (embora eu não assista, só quando vou a casa do senhor Manolo), mas foi bastante reduzida a projecção. Conforme carta do tio Domingos, acho que viram lá mais do que nós aqui. Sobre esse assunto há que fazer considerações e comentários, mas deixa para lá!...” (…) “…não podemos perder a fé, temos de pedir a Deus como principal desejo e necessidade, é que nos dê saúde; no entanto espero que embora sofrendo e vivendo em dúvidas o dia chegará em que a solução nos trará o desejado. Então assististe à chegada à Lua? Eu vi - fui no Museu de Arte Moderna onde deram a retransmissão e onde havia gente de mais!... Uma maravilha da Ciência!... Oxalá tenhas podido ver também, aqui anunciaram que a T.V. Gaúcha Canal 12, também transmitiria.
· (Rio, 12 de Agosto de 1969) – “Se Deus quiser tudo terá bom termo, não há que perder a fé!” (…) “Renovando meu pedido, não esqueças de quanta alegria me proporcionas com notas boas, o melhor que possas. É certo que se não descurares elas serão boas, mas se facilitares, se afrouxares, se te esqueceres dos desejos do teu pai (sem dúvida alguma o teu maior amigo!...), elas serão piores e consequentemente causadoras de desgosto e mau humor.”
· (Rio, 16 de Agosto de 1969) – “Tenhamos fé e esperança que tudo se resolverá. Tudo indica que Deus não deixará de nos ajudar.”
· (25 de Novembro de 1969) – “Como estarás despachado e a Nonô creio que na mesma altura, isto é, lá para dia 10, em princípio resolvi marcar passagens para a saída do Rio no dia 21. Como tal, e como não tenho ainda a decisão final, acho que deves já tentar ir com a mãezinha ao Rio Grande, pôr o visto nos passaportes, teu e dela, (…). O passaporte da Nonô que tem de ser renovado o visto. Te informas, talvez lá mesmo, se tem de ter outra certidão nova para ela; se não for preciso, renova o seu visto, (…). As malas serão só de roupas e documentos, pois não poderá a bagagem passar de 20 Kg por pessoa. (…) deves diligenciar o que te estou a expor!...” (…) “Espero que tenhas atitudes de aprumo e já à altura de homem, procurando ser sensato e inteligente. Estou ansioso por te poder abraçar.” (…) “Enfim, arregaça as mangas a ver se consegues pôr esses documentos prontos, para não haver demora, para poderem passar com todos o Natal - será a melhor prenda para a avozinha.”
Nas suas cartas, também escrevia carinhosamente à parte para a sua filha Leonor (“Nonô”), então com sete anos, abordando também os seus primeiros sucessos escolares. Para a nossa mãe, teve sempre palavras tranquilizadoras, recomendando-lhe confiança.



De novo em Portugal



Conseguiu, no final do ano de 1969, regressar ao seu País natal, onde viria a mais
uma vez recomeçar a sua empreendedora vida.
Reagrupada a família, ocorreu-lhe dar-nos um tempo de calma fruição do “velho jardim à beira-mar plantado”, estagnado numa época cinzenta, em viagens que fizemos acompanhados pelo seu irmão Domingos, cunhada e sobrinhos, percorrendo de carro o norte de Portugal, a Galiza e a Andaluzia.
Com o capital recebido da seguradora inglesa do barco, adquiriu uma loja de ferragens (“Fermetaço”) e uma sapataria (“Ilha Bela”), instalados na mesma rua de Campo de Ourique. Comprou ainda um talho no Mercado do Livramento, em Setúbal, cidade a que se sentia ligado pela recordação dos seus verdes anos, na torrefacção do seu tio. Chegou a ser por breve tempo proprietário de uma pequena quinta em Azeitão, próxima do Solar da Bacalhoa.
Homem viajado, conhecedor de várias cidades europeias e de Portugal de lés-a-lés, tinha um especial prazer em deslocar-se ao Alentejo, gosto que lhe tinha ficado desde os tempos de caixeiro-viajante de café. Acompanhava-o sempre que podia, a Évora, aí frequentando o Café Arcada, onde encontrava amigos de longa data, ligados a actividades agrícolas e pecuárias. Talvez pelas conversas lá assistidas, entre criadores de gado e lavradores, lhe tenha surgido a ideia de vir a ser seareiro de arroz, o que veio a acontecer, na zona de Alcácer do Sal, não sei precisar em que ano.
Mesmo nos tempos de grande ocupação com os vários negócios, sempre reservou a sagrada visita dominical aos seus pais, em Arranhó. Tendo como valor determinante da sua vida a Família, no meio das adversidades soube proporcionar a ambos filhos condições materiais e educacionais para obterem um Curso Superior (Licenciaturas em Medicina).
No ano de 1973, viajámos juntos ao Brasil, revendo alguns velhos amigos e locais antes conhecidos, visitando outros na vastidão desse País, que naquela década de sessenta tinham ficado por conhecer. Estivemos no lindo Rio de Janeiro, em Pelotas, em Belo Horizonte, Brasília, São Salvador da Bahia e Recife.
Passando a ser frequentador da Bolsa de Lisboa, fez uma aplicação financeira em acções, que veio a ter trágico desfecho, em virtude da Revolução do 25 de Abril de 1974.
Antifascista, ideologicamente formado nos valores humanísticos e da esquerda, penso poder defini-lo do ponto de vista político como um espírito generoso, ainda que de longa data desiludido com os políticos profissionais. Homem culto, pensava que o Ideal da Utopia era desacreditado pela prática dos oportunistas. O seu interesse pela política continuava bem vivo, verberando críticas de forma veemente às vergonhas da má governação portuguesa.
No entanto, como a sua paixão tinha sotaque brasileiro, era mais suave nas análises no que respeita ao que se passava no outro lado do Atlântico. Mantendo-se actualizado e não deixando de exercer o seu direito de voto, para o que se deslocava ao Consulado do Brasil, participando nos actos eleitorais a decorrer naquela terra em que tinha obtido a sua segunda nacionalidade.
Pela importância que na sua vida sempre deu às iniciativas de cariz cultural, interessado pelas suas diversificadas expressões, incentivador nato de actividades associativas, retomou a participação na Sociedade Recreativa que fundara, assim como – também dentro do seu espírito de benefício do bem colectivo – desempenhou funções de Direcção na Associação dos Comerciantes de Carne.
No âmbito de uma prospecção de mercado para uma firma de “import-export” que criou e que teria como uma possibilidade a colocação de café e frutos secos, deslocou-se a África.
Nos últimos anos, após desfazer-se progressivamente de todos os negócios, mantinha-se activo, cuidando de uma vinha e um pomar na Quinta do Paço, em sua propriedade. Gostava de ver as árvores por si plantadas a crescer, e tinha orgulho pela qualidade dos seus frutos. Sem ser por interesse económico – desse ponto de vista até tinha prejuízo –, podando e aplicando herbicidas e insecticidas, mantinha com essa pequena parcela de terra pouco produtiva uma ligação telúrica, na qual dispendia desvelos e algum pecúlio.
Gerindo uma parca reforma, dava-se ao luxo de adquirir espaçadamente livros, ultimamente de temática mística e de História do Cristianismo.
Quando ficou sem carta de condução, devido à já baixíssima acuidade visual, desgostoso de se ver impossibilitado de se deslocar à Quinta, ficou confinado a deambular pelas ruas de Campo de Ourique em redor do apartamento alugado em que há mais de três décadas vivia. Impossibilitado de organizar os seus papéis e de continuar a ler os seus livros e jornais, ia satisfazendo a sua acutilância intelectual e distraindo a emotividade deprimida à frente do televisor. A sua bonita caligrafia tornou-se vacilante e mais rara.



Com o neto Tiago:
















Na Páscoa de 2006, com o filho, a nora Paula e seu compadre Nicolau:





Epílogo



Meu pai foi um Homem generoso, inquieto e lutador, sempre em andanças e mudanças, a quem o sucesso não bafejou. Defeitos? Quem os não tem? Que se julguem os Homens antes pelas virtudes!
Tendo sido, graças à sua fascinante mundividência, espiritualmente enriquecido (pois que materialmente o não foi), homem de personalidade estruturada e culturalmente multifacetado, com o gosto pela sedutora conversação, meu pai espalhou a sua influência por filhos, sobrinhos e amigos, a quem deixou grande saudade.
Com ele tinha estado uns dias antes do Natal, fazendo-lhe a visita que sempre ansiava. Nesse dia conheceu mais um neto, o Nicolau.
Voltei a estar com ele quando deu entrada no Hospital. Com ele pela última vez falei, pelo telemóvel, no dia 9 de Janeiro de 2008, véspera de ser ligado ao ventilador.
No passado dia 13, o chuvoso dia da despedida, sabendo que inexoravelmente nunca mais o veria, com a sua alma calmamente falei, dizendo-lhe baixinho que ficava bem, num local bonito, ao pé dos seus queridos pais e também de todos rapazes da sua geração que à sua frente tinham seguido, enfim, na terra que o viu nascer em 14 de Novembro de 1919, há distantes oitenta e oito anos.
Imaginei que à sua espera estaria o seu neto Rafael para, de mãos dadas, passearem por campinas luminosas.



(*) Escrito em Beja, a 24 de Janeiro de 2008, por seu filho José Jorge.